Peixe de Aquário

14 novembro 2006

De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo

Em épocas que cada vez se discute a validade da "estética da fome para exportação" no cinema e, ao mesmo tempo, a necessidade da arte não se abster de certas realidades, o poema do Paulo vem como um soco no estômago de filhos de banqueiro que curtem vender produtos de cultura caros sobre a miséria.

(Como já foi dito por aí, o Ferréz e o Sérgio Vaz tinham que lançar a revista Morumbi...)


O melhor do poema é que foi publicado faz um tempo no Caderno Mais da Folha - metalinguagem e ironias da vida não são meras coincidências, hehe. Aí vai:


De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo

I. (o artista : um retrato)

A estréia de J.G.C. aos
32 anos, na quinta-
feira, é a certidão de nasci-
mento de um artista em dia com as
demandas de nosso tempo.
Tendo, nos últimos 12
se dedicado a oficinas,
cursos, viagens e visitas
a exposições, sua obra pôde es-
perar o momento certo
para eclodir, não sofrendo
da habitual ingenuidade
que caracteriza todos
os dublês de Duchamp, pois o
seu domínio sobre o espaço e
sobre a matéria é absoluto,
bem como sua força suges-
tiva, tanto que estimula
sensações inexistentes
em um público pouco ou nada
familiarizado com a
realidade que retrata.

II. (o artista : depoimento)

Estudei dos 20 aos 30
na Europa, tempo de intenso a-
prendizado, mas só conto os
dois anos depois da volta, es-
senciais para a concreção do
meu estilo, pois passei longos
meses nas ruas e favelas,
freqüentei cortiço, abrigo e
bueiro, conheço essa gente
pelos nomes, inclusive
seus cachorros, cheguei mesmo a
me sentir igual a eles.

III (a obra : o conceito)

Foi essa bizarra experiência
que lhe permitiu trazer à
galeria sacos e sacos
de latinhas de alumínio,
pilhas de papelão (os quais o
público pode tocar) e
duas carroças que estão livres
para quem quiser puxá-las.
A cena é um divertimento à
parte: há muito riso, já que
nem sempre os músculos das a-
cademias são aptos para
vencer os quilos de entulho. As
demais obras aprofundam-
se nesse universo excluído:
bancos (camas) de concreto
salpicados de excrementos,
panos puídos pendurados,
secando ao sol (um holofote) --
fachos que atravessam os furos
criam uma trama no espaço
--, cobertores embebidos
em querosene na espera
de um fósforo e, o principal, um
barraco inteiro, legítimo,
no qual entram dez pessoas de
cada vez. Lá: colchões velhos,
recortes tampando as frinchas
das paredes (o olho atento a-
qui diferencia as texturas
de cada, das tantas, tábua),
panelas com restos pelos
cantos e roupas imundas --
tudo bastante insalubre. A
visita não dura mais que
dois minutos, e é tão real que
na estréia alguns vomitaram.
J.G.C esperava o
vômito de quem, como ele,
não sabe o que é o inabitável.


IV (nota final)

Os antigos moradores
foram com justiça pagos
pelo barraco e por tudo
que eles tinham, inclusive as
roupas, podendo a família
toda regressar ao mato
do qual os coitados nunca
deviam ter posto o pé fora.
Se você ficou curioso,
mas crê que toda a sujeira
pode te macular, saiba
que os monitores do evento
num átimo providenciam a
completa assepsia de todos
logo que se sai da sala.


(ah, o vinho era de ótima safra)



de Paulo Ferraz

E HOJE: Lançamento do Alessandro Buzo, romance Guerreira. Na Ação Educativa (19hs) Rua General Jardim, 660 - Centro - São Paulo-SP. Detalhes no blog do autor, Suburbano Convicto.


5 Comentários:

  • Caraca, Ana! Esse poema do Pauloff é sensacional.
    Casa com a dedicatória do livro do Del que, se eu lembrasse na íntegra, deixaria escrita aqui em letras garrafais.
    Vivas à xilocaína e à hipocrisia!

    By Anonymous Anônimo, at 10:46 AM  

  • hahahá!

    a dedicatória do Del é fantástica - assim que criarmos o BIPOLARES (cortisolrasgado.blogspot.com), vc verá: tem que começar com ela!

    beijos, querida

    By Blogger ana rüsche, at 10:57 AM  

  • É, nada fofo mesmo seu post, rs. Piaui, tsc, tsc, tsc. Só agora me toquei que J.G.C lembra a forma como os jornais grafam o nome dos "menores em situação de risco" (nem sei se é assim o termo politicamente correto). Inimputável esse J.G.C. Beijos

    By Anonymous Anônimo, at 2:49 PM  

  • Esse poema é realmente dos melhores do Paulo F, antológico.

    By Blogger Fábio Aristimunho, at 1:36 AM  

  • pois é, o poema trata de um assunto superdelicado e dá conta do recado sem ser grosseiro. difícil. beijo ao medianeiro!

    By Blogger ana rüsche, at 4:26 PM  

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